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Esta postagem é de Henry Granville Widener, Bibliotecário de Referência de Língua Portuguesa, da Sala de Leitura Hispânica da Divisão Latino-Americana, Caribenha e Européia.
No dia 3 de abril de 2022, encerrou-se uma monumental carreira nas letras brasileiras com o falecimento da escritora Lygia Fagundes Telles. Nascida no dia 19 de abril de 1923, Fagundes Telles escreveu o primeiro conto aos 15 anos. Laureada com os prêmios Jabuti e Camões, integrante da Academia Brasileira de Letras desde 1985, a carreira ilustre de Fagundes Telles certamente será comemorada pelo mundo lusófono nos próximos meses e anos. Gostaríamos de fazer a nossa parte nesta comemoração com uma breve reflexão sobre o diálogo entre a Library of Congress, a autora e sua obra.
Para aqueles como eu que tomam esta oportunidade solene para conhecer Lygia Fagundes Telles pela primeira vez, a Handbook of Latin America Studies (HLAS) é recurso indispensável. Desde os anos 1970, colaboradores do HLAS têm acompanhado a obra de Fagundes Telles com análises e comentários para guiar os leitores na seleção da sua obra. Não é de espantar que entre este comentários frequentemente se encontram elogios da habilidade literária da autora. Em HLAS v. 42 (1980), a colaboradora Maria Angélica Guimarães Lopes caracterizou o “Seminário dos ratos” (1977) como “proeza esplêndida” que mostrava que Fagundes Telles “possui a primeira qualidade de uma escritora de ficção: uma mistura da velha arte com novas abordagens.”
Em HLAS v. 66 (2011), o professor Dário Borim escreveu que “poucas mulheres escritoras no Brasil disfrutam do êxito crítico e comercial que esta romancista e contista paulista tem conquistado nos cenários nacional e internacional,” acrescentando que o Conspiração das nuvens” (2007), uma coleção de crônicas e contos, revela aos “leitores fiéis da ficção de Telles” profundas informações sobre a gênese da sua obra.
Longe de serem unidos na apreciação de Fagundes Telles, os colaboradores do HLAS também fizeram críticas desaprovadoras e até cômicas da obra da autora e a sua potencial recepção. Em HLAS v. 38 (1978), julgou o professor Alexandrino A. Severino que As meninas” (1973), livro considerado entre os mais importantes da autora, “será um sucesso, mas devido às obscenidades, o sexo, e as drogas, seu impacto será reduzido.”
Para aqueles que desejem ler a obra de Fagundes Telles em inglês, o Handbook também dá comentários sobre as obras traduzadas da autora, como “The girl in the photograph” (As meninas), “Marble Dance” (Ciranda de pedra) and “Tigrela” (Seminário dos ratos), todas traduzidas por Margaret A. Neves.
No total, são 39 itens atribuídos a Fagundes Telles no acervo da Library of Congress, testemunho da carreira que vai de 1938 a 2018. Prova do impacto da obra de Fagundes Telles é a presença de recortes de artigos de jornal sobre a autora nos arquivos pessoais de Romy Medeiros da Fonseca, notável advogada e feminista que esteve por trás de vários dos movimentos pelos direitos da mulher no Brasil durante a segunda metade do século XX. Talvez o registro mais precioso de Fagundes Telles da Library of Congress seja a gravação da autora de 1983 no PALABRA Archive. Aqui a autora reflete sobre sua vida como autora e lê excertos da sua obra.
Fagundes Telles lembra que o amor por contar histórias começou na mocidade, quando a futura escritora juntava-se no quintal da casa com várias outras crianças para ouvir os contos da empregada doméstica. Uma noite em que a “minha pajem não apareceu”, depois de ter fugido com um trapezista do circo,
…eu resolvi num impulso de audácia substituí-la, tomar o seu lugar. Foi quando descobri que sentia menos medo falando. Que era mais excitante contar do que ouvir, porque enquanto eu falava, eu transferi um pouco daquela ansiedade, carga demasiado pesada para mim…me senti aliviada, esvaída sim, como se todo meu sangue tivesse escorrido nas minhas palavras, mas ao mesmo tempo, me senti tão poderosa, tão independente.
Os pais também influíram na vida de Lygia Fagundes Telles. A mãe “era uma feminista inconsciente quando ela me estimulou a escrever um livro….[dizendo a Lygia que] É uma profissão de homem, mas se você escolheu, por quê não?” Sobre a escolha de Lygia de estudar direito, a mãe reconheceu que “homem não gosta de ver mulher no ramo dele. Não sei se isso vai te ajudar no casamento. Mas você está tirando diplôma, pode trabalhar no que bem entender. E isto é importante para uma moça pobre.”
Do pai, cuja predileção pela roleta deixou a família à míngua, Fagundes Telles afirma ter herdado o amor pelo jogo. “Eu jogo nas palavras. Perdi. Ganhei. Não importa. O importante é a emoção. O Risco. A felicidade de exercer este ofício, que é o ofício da paixão.”
Embora mostre plena consciência dos sentimentos que a impulsionavam a escrever, Lygia Fagundes Telles parece incerta no que diz respeito à interpretação da sua obra,
…o ato da criação literária é sempre um mistério. Impossível determinar as fronteiras do criador e da criação, do imaginário e do real. Sei que há escritores que conseguem se explicar também. Eu não. Eu escrevo, e este corpo a corpo com a palavra já me toma todo o tempo que se faz cada vez mais curto dentro neste cotidiano devorador. Há quem considere minha obra com um certo travo amargo escuro, mas eu não participo desta opinião…Eu tenho esperança na manhã. Então eu espero que esta manhã, com seu grão de loucura e de imprevisto, me salve.
Por outro lado, Fagundes Telles não tinha dúvidas sobre o papel da literatura na sociedade:
…Eu considero o livro vivo o livro que tá nas livrarias ao alcance do leitor…Eu creio que a função do escritor é de ser a testemunha do seu tempo e da sua sociedade. Ele é uma testemunha participante. Assiste e recolhe. Ele recolhendo e assistindo, ele consola o seu próximo e escreve por aqueles que não podem escrever.
Ainda que Lygia Fagundes Telles nunca mais nos trará novas histórias, a Library of Congress continuará a dar acesso à sua obra, para que ela continue a estender-se como “ponte buscando tocar nesse próximo, na tentativa de ajudá-lo. Mesmo através de soluções ambíguas na sua luta e na sua esperança. A esperança que o escritor tem que ter no coração.”
Descubra mais
Handbook of Latin American Studies (HLAS): A Resource Guide A Handbook of Latin American Studies é uma bibliografia sobre a América Latina de obras seletas e anotadas por acadêmicos.
The PALABRA Archive at the Library of Congress O PALABRA Archive é uma coleção de gravações originais de poetas e escritores dos séculos XX e XXI.
Lygia Fagundes Telles no StoryMap da Library of Congress “Traveling Words and Sounds” Os StoryMaps são publicações de narrativa multimídia nos materiais da biblioteca que podem incluir livros raros, fotografias, gravações de áudio, música, mapas e muito mais.
Library of Congress Research Guides Os guias da Library of Congress são organizados por assunto e por coleção e incluem materiais online, e materais disponíveis apenas por visita presencial à biblioteca. Para acessar os guias sobre os estudos caribenhos, ibéricos e latinoamericanos clique aqui.
O catálogo da Library of Congress contém milhões de registros de livros, folhetins, manuscritos, mapas, músicas, gravações, imagens e recursos eletrônicos. Segue uma seleção de livros de Lygia Fagundes Telles e outro relacionado à obra da autora.
Telles, Lygia Fagundes. The marble dance. (1986). translated by Margaret A. Neves
Telles, Lygia Fagundes. A estrutura da bolha de sabão: contos. (1991)
Telles, Lygia Fagundes. Antes do baile verde. (1970)
Silva, Vera Maria Tietzmann. A metamorfose nos contos de Lygia Fagundes Telles. (1985)
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